Senta que lá vem história! Afinal, são décadas de costuras e descosturas de vivências tão distintas que, se em um primeiro olhar parecem um conjunto estético inegociável de retalhos, resultam em uma belíssima colcha, que acolhe e protege como o abraço de uma grande amiga – a vida.
Por onde puxamos o fio desse tecido?
Costurando afeto e realidade
Arrisco dizer que tudo começou com a menina de cachos alourados, sentada ao lado da máquina de costura de minha avó Augusta, acompanhando longas tardes de costuras por onde nasceram roupas, toalhas e a magia do Natal, através de impecáveis bonecas de pano! Admirava a destreza das mãos, orquestrando o ritmo e a direção de linhas, alfinetes, agulhas e tesouras, em movimentos precisos. Ela gostava de contar histórias enquanto costurava, nos intervalos entre os cuidados com as três netas, para que meus pais pudessem trabalhar. Meu primeiro estágio foi bordado de memórias afetivas, nessa oficina familiar rodeada de amor, risos e travessuras com os tecidos.


Minhas duas avós eram costureiras. E com a avó materna, Margarida, que costurava uniformes de brim para uma fábrica, o episódio foi avesso pois não gerou boas lembranças, visto que o trabalho era intenso, cansativo e mal remunerado. Ela costurava por ofício e, como terceirizada, trabalhava em casa dia e noite, perpetuando o estigma da exploração pelo trabalho, um clássico do setor têxtil. Essa imagem é a que mais me dói. Mulheres, como minha avó, invisíveis e reféns de uma máquina de costura, adoecendo pelo esvaziamento de sentido de seu trabalho e de sua existência.
Rotinas (nada básicas) de escritório
Seguindo a linha do tempo, voltamos para a minha mãe, que foi secretária da General Motors por toda a vida produtiva até se aposentar, com stress crônico. Mas o seu esforço e dedicação à profissão eram lindos e foram minha inspiração para o primeiro emprego, aos 15 anos, em um escritório de advocacia. Resisti por alguns dias e, como um peixe fora d’água se rebatendo entre o telefone e a máquina de escrever, saltei de banda, mas a sina dos serviços administrativos se mantiveram por muitas outras jornadas. Aos 17 anos, orgulhosamente, inaugurei a carteira de trabalho como assistente administrativa na área contábil e fiscal da Itautec. Trabalhei na fábrica de microprocessadores, um ambiente quase hospitalar na limpeza e precisão da linha de montagem que despertou o meu interesse por fábricas e, também, por sindicatos e política! Na época, me encantei pelos números e quase embarquei na contabilidade, mas prontamente desestimulada pelos colegas – que não viam futuro na área devido à minha ansiedade pela comunicação – mudei a direção para biologia, aos 17 anos, onde cursei por dois anos e, depois, mais dois na publicidade e propaganda, uma escolha bem mais divertida! Logo que pude migrei para uma agência, a Unidade InterAmericana de Publicidade e Propaganda, onde atuei no atendimento, RTV e criação. Ah sim, ainda como assistente de alguém mas, finalmente, a vida parecia organizada de novo.
Ilusão juvenil. Faculdade e trabalho convergiam, um bom salário, amigos interessantes, festas incríveis, mas não o suficiente para superar uma crise profunda, disparada pelo vazio do falecimento precoce de meu pai e a saliência indisciplinada de minhas aspirações sociais, nada condizentes com aquela realidade. Hora de partir! Difícil abrir mão do emprego dos sonhos, mas foi nessa escolha que comecei a semear o futuro que acredito.
Calma, não vai embora que tem aventuras nos próximos capítulos! Mochilão nas costas e mudanças à vista!
Tudo novo
Mudei de cidade, curso e trabalho. O primeiro momento “uau” da vida a gente nunca esquece! Fui para a Unicamp, em Campinas, cursar ciências sociais. O curso trazia respostas para a minha inquietude intelectual e propósito social, despertando o altruísmo e o senso de responsabilidade com o coletivo e o planeta. Logo consegui estágio para trabalhar na biblioteca do Núcleo de Políticas Públicas do IFCH, onde tive acesso à vasta literatura e a vida parecia perfeita. Lá também empreendia vendendo tortas para compor o orçamento super enxuto. A roda da vida é engraçada. A gente acerta uma casa e bagunça as demais… Depois de muito rock’n roll, me dei conta de que estava no paraíso mas quase naufragando no objetivo principal, e que aquilo não funcionava para mim! Era muita novidade e tive dificuldade em equilibrar no campus os estudos e a vida social intensa.
Um bebê (e escolhas) a caminho
Prestei um novo vestibular e voltei a cursar sociologia, na USP, e Rádio e TV, na Faap. O objetivo era ampliar repertório teórico e pensamento crítico para produzir conteúdo documental. Um plano ousado, mas consegui bolsa integral na FAAP e me encorajei a seguir adiante. Cursei as duas, até a gravidez exigir uma escolha. Optei por concluir sociologia e, durante o curso, fiz um longo e proveitoso estágio no IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas, onde modelei meus conhecimentos em pesquisa em sociologia do trabalho e conheci meu companheiro de estrada.

A maternidade e a sociologia foram a combinação mais perfeita das minhas costuras! Mas porque traçar uma linha reta se podemos fazer alguns desvios e apreciar curvas e novas paisagens. Assim, concluído o curso, além do diploma já era mãe – o segundo momento “uau” da vida – e estava me separando. Precisava de um emprego estável. Mas eu não estava sozinha e, com a ajuda de pessoas queridas a quem sou muito agradecida, mantive a força e esperei. As oportunidades surgem quando estamos atentos e preparados ou desesperados, mas corajosos.
Respira fundo para saltar nos próximos episódios, na poderosa era da tecnologia de informação, lá pelos anos 1990.

Do campus à era high tech
Primeiro impacto, uma mudança radical de cenário, dos jardins dos campus universitários para as “baias” climatizadas, em prédios espelhados e hermeticamente fechados das grandes corporações de tecnologia de software, em São Paulo. Riqueza, ambição, criatividade, rapidez, competição. Tudo intenso, sempre. Lá estava eu, a mesma que queria salvar o mundo e as crianças desnutridas da África, aprendendo a lógica da combinação de bits e bytes e mergulhando de cabeça no universo do marketing. Comecei como assistente, fui gerente de produtos, coordenadora de pesquisas de mercado para os principais players de software e cheguei a gerente de contas, responsável por vendas de milhões de dólares em projetos de inteligência de software. Como trabalhei na Microsoft, Informix Corporation e na IDC – International Data Corporation, creio ter circulado pelas principais corporações de tecnologia do momento e aprendi com os melhores gurus de marketing de relacionamento e vendas, pesquisa de mercado e o vício das stock options. Vida que segue, em uma gangorra louca. Carreira em ascensão, bônus e glamour, mas o coração ainda torcia pela cientista social, idealista e sensível, distanciada pelo esforço de tantas batalhas diárias.
Calor humano em terras gélidas
Novas vivências de alteridade e o friozinho na barriga frente ao desconhecido que sempre me atraíram, o convite do meu companheiro – que faria seu pós-doutorado na Suécia – para um ano sabático na Escandinávia era demasiado tentador. Ironias do destino, pedi demissão e encerrei a carreira no setor de tecnologia para buscar calor humano em terras gélidas! Terceiro momento “uau” da vida! Estar e conviver com outros imigrantes e refugiados de guerra em um país como a Suécia foi a chave mental para despertar do sono profundo minhas aspirações solidárias e ambientalistas. A forte conexão com a natureza revigorou minha saúde física, mental e emocional. Conheci iniciativas de assistência e integração social e participei de várias ações de preservação florestal, traçando um novo sentido para a vida e, sem dúvidas, para o meu trabalho. O nível de engajamento do sueco às causas socioambientais e a empatia com as pessoas refez a costura de esperança no ser humano. Entendi que uma outra forma de viver e fazer as coisas, colocando as pessoas e o planeta como prioridade, era possível, e a guinada de rota aconteceu.

Ainda lá, entrei em contato com organizações sociais no Brasil e consegui uma oportunidade no Instituto Ethos, onde fiz uma especialização de quatro anos em gestão de Responsabilidade Social Empresarial. Mais uma vez, aprendi com os melhores que a ética e os valores humanos fundamentais regem a vida e os negócios. Tudo acontece a partir das escolhas e das pessoas que encontramos no caminho, como diz Oded Grajew, empresário israelense, naturalizado brasileiro e com importante atuação no terceiro setor.
Empreendendo Responsabilidade Social
Concluído o ciclo no Ethos criei, com um sócio da área de tecnologias de inovação, a Sciranda de Projetos e Tecnologias, atuando na assessoria em RSE para empresas, organismos de fomento à pesquisa e organizações sociais. Foi um período bastante exitoso em parcerias e projetos de sustentabilidade para o setor da construção civil, como a estruturação do CBCS – Conselho Brasileiro de Construção Sustentável; UNDP África – Projeto de empreendedorismo em parceria com a Microsoft, IBM e governo local, para micros e pequenos comerciantes, nas Ilhas Maurício; Petrobras – Participação na banca de avaliadores de projetos sociais de edital e no apoio ao desenvolvimento e captação de recursos para projetos sociais diversos.
Entre 2010 e 2014, sentimos a mudança no mercado de consultoria com a incorporação de RSE nas áreas de marketing e recursos humanos, o que seria uma boa notícia no contexto ampliado de mudanças na governança e práticas empresariais, mas afetou severamente a oferta de projetos sociais da Sciranda e, como a alternativa seria me envolver no hardware do negócio, com projetos de desenvolvimento de tecnologias para a construção civil, decidi me desligar da sociedade.
A costura em reencontro e profundidade pessoal


A costura foi, então, um desabafo e um tratamento para o estresse e a ansiedade gerados em uma nova transição de carreira. O objetivo era usufruir dos benefícios da manualidade para fortalecer minha saúde mental e emocional, aprendendo algo novo, exercitando a atenção e o empoderamento criativo e empreendedor. Claro, já me organizava para ajudar algumas organizações com doações de produtos feitos por mim. Me encantei pela ideia! Sem grandes pretensões, comprei uma máquina Singer antiga e costurei prazerosamente, enquanto revirava a memória afetiva da infância. A primeira coleção foi de bolsas furoshiki, com tecidos de chita de algodão. Lovely! Costurei, doei e vendi muitas bolsas. Na evolução do processo, fiz o curso profissionalizante no Senac. Entre outras ex-executivas, em intervalos de carreira, não sabia se me tornaria costureira, mas a diversão estava garantida pois havia muita sinergia e trocas preciosas entre mulheres maduras e inteligentes, buscando na delicadeza do autocuidado fazer as pazes consigo e entender e aceitar o chamado interno, para seguir novos caminhos. Depois de dominar uma máquina industrial e fazer o meu próprio blazer de veludo, não haveria barreiras para essa aspirante a profissional da moda, só não estava claro como e para que… Hahaha! Porém as respostas vieram rápido. Para ampliar o repertório e motivação, comecei a pesquisar, estudar e frequentar eventos de moda sustentável, que me conduziram à premiação em um concurso, o Paraty Eco Fashion, em 2014. Costurava e refletia.
Alma e vida aos Tecidos Sociais
O mercado da moda nunca me atraiu, mas o rastro de estragos que promove merece minha total atenção. O sentimento de urgência e indignidade com as violações de direitos de trabalhadores da cadeia da moda, no Brasil e em países da Ásia e África, e os impactos dessa produção intensiva e extrativista no meio ambiente viraram a minha bússola, direcionaram o meu ativismo para a causa do consumo consciente e inspiraram o propósito que dá alma e deu vida à Tecido Social, também em 2014. Tudo o que fazemos deve ser para melhorar a vida das pessoas e do planeta. Do contrário, não vale a pena. No mesmo ano o projeto recebeu a aceleração do Social Good Brasil, ponto de partida dessa jornada de nove anos que soma uma longa curva de aprendizagem, resiliência, muitos enganos e acertos e, principalmente, o brilho nos olhos refletindo a certeza de ainda estar no caminho.

Expandindo conexões com o Fashion Revolution Brasil
Ainda em 2014 (como rendeu!), trazendo um fôlego adicional aos trabalhos, aceito o convite de Fernanda Simon, junto a Eloisa Artuso e Bruna Miranda – um coletivo de mentes brilhantes a quem tenho grande respeito e afeição – para formarmos a equipe do movimento Fashion Revolution no Brasil (www.fashionrevolution.org). Seu objetivo é sensibilizar e informar a sociedade sobre os impactos socioambientais relevantes da indústria da moda, conscientizando o consumidor e profissionais sobre seu potencial de mudança através de campanhas e ferramentas educativas, palestras e eventos. O movimento atingiu grande repercussão e adesão nacional, mas no início era bastante desafiador criar um canal de diálogo com as associações setoriais e a indústria da moda. Trabalhei com a equipe até 2017, fazendo a articulação desses relacionamentos e parcerias institucionais e palestras de sensibilização, além do desenvolvimento e captação de suporte para projetos de impacto. Não tínhamos recursos financeiros exceto os apoios diversos, mas fizemos grandes realizações com bons colaboradores e muito trabalho voluntário, como os que você pode conferir aqui na timeline da Tecido Social.

A costura em profundidade social
A costura abriu horizontes de aprendizagem e relacionamentos para muito além da moda ou das oficinas. Através dela, aprendi que os principais itens de sustentabilidade de qualquer projeto são a empatia, a escuta e o respeito à diversidade. Valores éticos baseados na solidariedade, remuneração justa e colaboração completam a mágica que a criatividade, por si só, não realiza. Vi projetos incríveis não avançarem pela ausência desses aviamentos de humanidade, ou pela incapacidade de comunicação entre iguais.
Essa trilha me levou a aprofundar estudos e conexões afetuosas com muitos empreendimentos de economia solidária, para entender o potencial agregador e de transformação de vulnerabilidades econômicas e sociais das redes de apoio à mulher, idosos, saúde mental, imigrantes e outros, onde o cooperativismo e a costura aparecem como alternativas produtivas, autogestionárias e de desenvolvimento humano, em contraste com as engrenagens da lógica capitalista. Tive a oportunidade de conhecer e realizar projetos em centros de apoio à mulher em situação de violência, mulheres privadas de liberdade e em fase de ressocialização; centros de apoio a famílias de crianças e jovens com câncer; casas de apoio e abrigo de idosos; centros de atendimento e inclusão pelo trabalho da rede saúde mental; centros de apoio e abrigo temporário de imigrantes; projetos de inclusão de pessoas com deficiência e, claro, muitas oficinas de costura. Foram tantas oportunidades incríveis de aprender e empreender, mais uma vez, com os melhores. Mulheres de fibra e gente que acolhe, cuida e faz acontecer a mudança, quase invisível, nas franjas do tecido social.

Na Tecido Social nossas histórias se entrelaçam
No look do dia, a Tecido Social veste-se com o estilo de uma empresa social para criar, promover e apoiar projetos, pessoas e negócios orientados para melhorar a nossa experiência de vida e de trabalho, cuidando das pessoas e do nosso jardim terrestre. Para que esse propósito se materialize, minha vocação está na facilitação e viabilização de boas ideias, articulando e sensibilizando os diversos agentes sociais – cooperativas, grupos produtivos, coletivos e redes, organizações sem fins lucrativos, governos e empresas – na implementação de melhorias nos processos de produção e consumo, com base nos princípios do ESG e economia circular e na criação de um ecossistema de negócios mais responsável, justo e inclusivo.
Mas, será que aqui termina a nossa história?
Eu gosto de fazer muitas coisas e não resisto a uma novidade. Sabe, o tipo que está sempre de malas prontas para qualquer viagem. Tive sorte na vida, alguns dissabores, o que faz parte, escolhi minhas batalhas e delas trago no peito amigos, colegas e parceiros a quem sou muito agradecida por me tornarem uma pessoa e profissional melhor. Mais versátil, consciente, engajada e sensível.
Então, com essa bagagem, talvez novas aventuras e um novo capítulo estejam apenas por começar! Que tal a gente se conhecer melhor, você me contar a sua história e juntarmos os tecidos que ampliam essa colcha?
Sou grata.